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sábado, 25 de setembro de 2021

... Deserto ...

                                                
                                                            Álvaro de Campos ( Fernando Pessoa )

        Grandes são os desertos, e tudo é deserto.

Grandes são os desertos, e tudo é deserto.

Não são algumas toneladas de pedras ou tijolos ao alto

que disfarçam o solo, o tal solo que é tudo.

Grandes são os desertos e as almas desertas e grandes.

Desertas porque não passa por elas senão elas mesmas,

grandes porque de ali se vê tudo, e tudo morreu.

Grandes são os desertos, minha alma!

Grandes são os desertos.

Não tirei bilhete para a vida,

errei a porta do sentimento.

Não houve vontade ou ocasião que eu não perdesse.

Hoje não me resta, em vésperas de viagem,

com a mala aberta esperando a arrumação adiada.

Sentado na cadeira em companhia com as camisas que não cabem,

hoje não me resta à parte o incómodo de estar assim sentado

senão saber isto:

Grandes são os desertos, e tudo é deserto.

Grande é a vida, e não vale a pena haver vida.

Arrumo melhor a mala com os olhos de pensar em arrumar

que com arrumação das mãos factícias e creio que digo bem.

Acendo o cigarro para adiar a viagem.

Para adiar todas as viagens.

para adiar o universo inteiro.

Volta amanhã, realidade!

Basta por hoje, gentes!

Adia-te, presente absoluto!

Mais vale não ser que ser assim.

Comprem chocolates à criança a quem sucedi por erro.

E tirem a tabuleta porque amanhã é infinito.

Mas tenho que arrumar a mala.

Tenho por força que arrumar a mala, a mala.

Não posso levar as camisas na hipótese e a mala na razão.

Sim, toda a vida tenho tido que arrumar a mala.

Mas também, toda a vida, tenho ficado sentado 

sobre o canto das camisas empilhadas,

a ruminar, como um boi que não chegou a Ápis, destino.

Tenho que arrumar a mala de ser.

Tenho que existir a arrumar malas.

A cinza do cigarro cai sobre a camisa de cima do monte.

Olho para o lado, verifico que estou a dormir.

Sei só que tenho que arrumar a mala,

E que os desertos são grandes e tudo é deserto,

E qualquer parábola a respeito disto, mas dessa é que já me esqueci.

Ergo-me de repente todos os Césares.

Vou definitivamente arrumar a mala.

Arre, hei-de arrumá-la e fechá-la,

hei-de vê-la levar de aqui,

hei de existir independentemente dela.

Grandes são os desertos e tudo é deserto,

salvo erro, naturalmente.

Pobre da alma humana com oásis só no deserto ao lado!

Mais vale arrumar a mala.

Fim.





 

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