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segunda-feira, 10 de julho de 2017

... Cronica de Rubem Alves ...




                         Rubem Azevedo Alves 
           * 15 de setembro de 1933 
   19 de julho de 2014
 

 Rubem foi psicanalista, educador,
teólogo e escritor brasileiro.
É autor de livros e artigos abordando temas religiosos,
educacionais, existenciais,
além de uma série de livros infantis.

 

Crônica
                        (Rubem Alves)

Tão bonita, a idéia da democracia!
Melhor não há.
Os cidadãos educados, conscientes das suas necessidades,
no exercício da sua liberdade, sem compulsões, sem enganos, escolhem por meio do voto
aqueles que serão os seus representantes.
Na cidade, os vereadores, no estado, os deputados estaduais,
no país, os deputados federais e os senadores.
Nada mais transparente. Nada mais honesto.
E os representantes do povo,
 dominados por um único ideal:
trabalhar para o bem comum.

No ato de se aceitarem como representantes do povo
eles deixam de lado a sua vontade,
os seus interesses privados, particulares.
Tornaram-se depositários da vontade do povo.
Quando pensam e agem
não pensam e agem de acordo com os seus interesses.
Apenas uma pergunta informa o seu pensar e o seu agir:
“É do interesse do povo?”
É assim que eu quero.
É assim que todo mundo quer.

Como é linda a democracia quando escrita no papel!
O problema é que o que está escrito,
 não é aquilo que é vivido.
O poder corrompe os ideais.
Faz muitos anos,
 escrevi uma estória para grandes e pequenos
sobre o que acontece na democracia.

Era sobre um bando de ratos
que vivia num buraco do assoalho de uma casa.
Todo mundo sabe que ratos gostam de queijo.
E havia um queijo enorme, amarelo, cheiroso,
sobre a mesa da sala onde estava o buraco.
Os ratos, de dentro do seu buraco,
olhavam o queijo e sonhavam sobre o dia em que juntos, ordenadamente, alegremente, haveriam de comer o queijo.

O queijo era grande para todos.
Todos comeriam o queijo fraternalmente.
Nenhum rato ficaria com fome.
Que sonho mais bonito!
Mas por que não comiam o queijo?
Por causa do gato que guardava o queijo.
O gato era o obstáculo que se interpunha
entre os ratos e o queijo.
Eliminado o gato, seria o paraíso!
É sempre assim:
 diante do gato todos os ratos são irmãos.
E marchavam gritando palavras de ordem:
“Os ratos, unidos, jamais serão vencidos...”
Pois não é que um dia o gato desapareceu?
Para onde foi, ninguém sabe.
Os ratos não podiam acreditar!
Chegara a hora de realizar o seu sonho!
A participação fraterna e socialista no bem supremo,
o queijo.
Correram para o queijo.
Os ratos mais fortes, na frente.
E os ratos fracos, humildemente, atrás, como na vida...
Aí uma metamorfose aconteceu.
Ao chegar ao queijo os ratos perceberam
que queijos sonhados não eram iguais aos queijos reais.
Os queijos sonhados são infinitos:
pode-se comer deles à vontade que não acabam.
Mas os queijos reais, cada mordida de um
é uma mordida a menos para o outro.
E à fraternidade seguiu-se a luta.
Não entre gatos e ratos, mas entre ratos e ratos.
E os ratos, que até então só sabiam sorrir
e viviam cantando canções de fraternidade,
arreganharam os dentes afiados uns para os outros.
E aí os ratos se dividiram em ratos gordos de dentes afiados
e ratos magros que viviam amedrontados.
E os ratos magros, de dentro do seu buraco,
olhavam para os ratos gordos, comendo o queijo.
E notaram então uma horrível transformação:
os ratos gordos tinham a cara igualzinha à do gato.
Porque, entre gato e rato a diferença é pouca: só uma letra...

Muitas pessoas
sabem tudo sobre essa coisa que se chama política.
Dentre todos
os que mais sabem são os políticos por profissão
que se especializam na arte de não cair do cavalo.
São capazes de montar touro, búfalo, vaca brava,
cavalo selvagem, burro empacador, zebra...
Cavalo vai, cavalo vem, o dito político não pisa o chão.
Um exemplo insuperável na arte de montar cavalos sem cair
está no senador José Sarney, da Academia Brasileira de Letras,
autor do livro “Os marimbondos de fogo”.
Por mais que o bicho corcoveie ele está sempre por cima.
Esses são os políticos matreiros, malandros,
que vivem mudando de cor, escorregadios.
Sabem tudo sobre política mas não contam pra ninguém.
E são sempre reeleitos democraticamente pelo povo.
Eles sabem a arte de enganar o povo.
De todas as criaturas que DEUS Todo Poderoso criou,
o povo é a mais boba, a mais enganável.
No Paraíso a Serpente estava em campanha eleitoral;
era candidata.
Sua fala serpentina foi preparada pelo Duda Mendonça,
especialista na arte do engano.
E Adão e Eva eram os eleitores, bobões, povo...
Votaram sem saber no que estavam votando
e deu nisso que deu.
Mas há também os cientistas políticos,
gente séria em que se pode confiar,
que não quer enganar ninguém.
Mas eles escrevem tão complicado
que somente aqueles que já sabem
entendem o que eles dizem.
O que eles dizem não ajuda o povo a pensar.
O povo deseja pensar?

O povo aprendeu
que certo ou errado não interessa,
que pensar não faz diferença.
Então o melhor é não pensar.
Pensar dá muito trabalho e não leva a nada.
 
Mas há uns tipos geniais
que são capazes de ensinar a política
não como malandragem, não como ciência,
mas como literatura.
É o caso de George Orwell.
Um dos seus livros é o ... 1984.
Quando ele o escreveu, o ano de 1984 estava tão longe!
Orwell percebeu como ninguém que o poder é um jogo,
no qual a peça mais poderosa é a linguagem.
É através da linguagem
que o poder domina as pessoas por dentro.
A paixão por um partido
é um caso de perturbação psicótica da linguagem.
O apaixonado alucina:
 toma a linguagem por realidade.
O que se ama
é aquilo que a linguagem marcou dentro de mim.
Não se vota num candidato.
Vota-se naquilo que se diz sobre ele.
As CPIs são todas arenas
onde se travam batalhas da linguagem.
É a linguagem que dá credibilidade ao poder.
Mas Orwell escreveu também um livrinho bem pequeno,
uma fábula que até as crianças entendem,
Animal Farm ( em português A revolução dos bichos )
que é uma delícia de clareza, sutileza, humor e terror...
É a estória dos bichos de uma fazenda, cavalos, porcos, vacas, cabritos, patos, gansos, cachorros...
Cansaram-se de ser explorados pelo fazendeiro
e resolveram fazer uma revolução.
 
Juntos, unidos, expulsaram o fazendeiro aos coices e dentadas.
Estava terminada a primeira fase da revolução.
 
Segunda fase:
Era preciso que as leis fossem claras e transparentes
e que expressassem a vontade de todos os animais.
Para o conhecimento de todos
elas foram pintadas em letras enormes
na parede de um paiol.
A primeira lei era: “Todos os bichos são iguais”.

Terceira fase:
Quem serão os líderes?
Terão de ser escolhidos democraticamente.
E assim foi
( não vou contar quais foram os bichos escolhidos para líderes...). Entretanto, depois que os líderes se assentaram no poder,
coisas estranhas começaram a acontecer.
 
Por exemplo:
num belo dia, ao acordar, os animais viram
que a primeira lei havia sido modificada.
Estava lá escrito na parede do paiol:
“ Todos os bichos são iguais.
Mas alguns bichos são mais iguais que os outros...”
Não vou contar o fim da parábola.

O que importa é que Orwell
percebeu a armadilha do poder:
depois que se dá a um grupo
o poder para determinar as leis,
não há formas de impedir que ele estabeleça
as leis que lhe são convenientes.
Os que eram antes oprimidos,
de posse do poder, se transformam em opressores.
Será essa a ironia da história,
que cada luta pela liberdade
se transforme sempre numa nova forma de opressão?
Parece que só pode ser partido ético
o partido que não está no poder.
O poder cria imperativos de outra ordem.


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